A passagem
Por Breno Ribeiro
A passagem (Stay, 2005),
dirigido por Marc Forster, traz uma narrativa intrigante que desvela seus
significados pouco a pouco e, com várias metáforas e rimas visuais, oferece
material para discussões infindáveis. Neste contexto, e amparado por alguns
conceitos psicanalíticos sobre a natureza dos sonhos, apresentarei algumas
interpretações sobre o filme.
A trama gira em torno do
psiquiatra Sam Foster (Ewan mcGregor) que se vê obcecado em ajudar Henry Letham
(Ryan Gosling), um estudante de Belas Artes profundamente angustiado que planeja
cometer suicídio. À medida que Sam estuda o caso, começa a duvidar da realidade
que se apresenta, pois as coisas começam a fazer cada vez menos sentido.
Apenas no fim do filme
vemos que toda a trama é construída por Henry, numa espécie de devaneio, enquanto
este agonizava, após um acidente automobilístico no qual morrem a namorada e os
pais do personagem. Esse seu devaneio, ao que parece, funciona na lógica de um
sonho, misturando aspectos psíquicos com fatores esternos. Há mudanças
repentinas de cenário e de personagens, como ocorre num sonho. Assim, o que
vemos é uma viagem na mente do personagem que, naquele momento, está cheia de
dor e remorso. Isso reflete em seu “sonho” por meio de uma trama que ele cria a
partir do que está acontecendo à sua volta em seus últimos minutos de vida.
Para a psicanálise o sonho
é uma manifestação de conteúdos inconscientes que ocorre durante o sono, ou
seja, quando o nível de consciência está baixo. Um dos mecanismos do sonho
descritos por Freud é a condensação, que consiste na combinação de vários
elementos (temas, imagens, ideias etc.), o que ocorre com muita frequência no
filme.
Freud postulava que o
inconsciente é atemporal. Baseando nisso, podemos entender porque um momento que
dura poucos minutos no real parece mais tempo na trama inconsciente; que também
não se apresenta de modo linear.
Assim, vemos a confusão
mental de Henry, no estado de quase morte, e também uma série de outras coisas
que passam por sua cabeça, como questões mal resolvidas (como não ter pedido
sua namorada em casamento), sentimentos de culpa etc. Ele se sente culpado pela
morte dos seus entes e isso se expressa no "sonho" por meio dos
inúmeros "perdoem-me" que Henry escreve na parede do seu quarto.
Seu sentimento de culpa
também é manifestado no “sonho” através da ideação suicida, ou quando apaga
cigarros na própria pele, num ato de autopunição.
As vozes que ouve e as
pessoas que ele encontra no decorrer da trama são as pessoas ao seu redor, no
local do acidente. O menino com a mãe, o casal de velhinhos, entre outros. Em
seus últimos momentos de vida, Henry está com a visão turva e duplicada, isso
explica a grande quantidade de gêmeos e pessoas duplicadas que aparecem em seu
devaneio.
Por meio do mecanismo de
condensação, Henry cria, na sua trama inconsciente, personagens inspirados nas
pessoas que estão a sua volta após o acidente, mas que representam aspectos de
sua personalidade. Sam, o médico que tenta desesperadamente socorrê-lo no local
do acidente, também tenta ajuda-lo no "sonho", mas como psiquiatra,
uma vez que Henry está atormentado pela culpa.
Podemos entender esse
personagem como a combinação de Sam, com o desejo de Henry em ser ajudado, e
elementos de suas experiências anteriores com psiquiatras. Em vários momentos a
imagem de Sam é misturada com a de Henry, e até mesmo alguns personagens os
confundem.
E reparem que o Dr. Sam
Foster usa sempre calças muito curtas. Isso porque, ele, na realidade, está
agachado ao lado de Henry, que o vê com as calças acima dos tornozelos, devido
à posição.
Já Lila (Naomi Watts), a
enfermeira que também o socorre depois do acidente, no “sonho” é representante
das aspirações artísticas de Henry como pintor e também possui traços do seu
passado. Ela traz cicatrizes nos braços, resultado de uma tentativa de suicídio
quando vivia uma crise depressiva. Algumas cenas sugerem que esta seja uma
passagem da vida de Henry, como quando Lila diz que suas cicatrizes “são de uma
outra vida” e quando sua namorada o descreve como um sujeito “muito pálido, magro
e com cicatrizes nos braços”.
Enfim, A Passagem retrata
a tentativa autocurativa inconsciente de Henry, que busca, através dos seus
devaneios, ficar em paz consigo mesmo, após a experiência avassaladora que foi
o acidente. E as várias cenas em que Sam desce escadarias em espiral é a
analogia dessa jornada que vai cada vez mais fundo em seu inconsciente.
Leia outras análises:
Excelente análise, me fez entender vários pontos do filme que não tinham sentido pra mim. O da calça e dos gêmeos foi o mais intrigante.
ResponderExcluirAnálise maravilhosa.Conseguiu esclarecer alguns aspectos que me fugiram à percepção. Agradeço a você por ter postado. Parabéns!
ResponderExcluirBela análise, e esclarecedora. Realmente o filme é intrigante e se revela somente no fim. Prende a atenção o tempo todo. Boa diversão.
ResponderExcluirSensacional!!!
ResponderExcluirParabéns pela análise!!! Psicanálise sempre incrível!
ResponderExcluirEu tinha entendido que todo filme era um sonho dele ,depois da cena final rs ,no qual ficou mais claro . Pois durante o filme me parecia que Henry era a consciência de Sam .Mais sua análise foi perfeita ,nota 10 pra ti !!
ResponderExcluirAté entendi isso no final do filme. O que não entra na minha cabeça que a trama ocorre toda no ponto de vista do Sam, sendo que o devaneio é de Henry. Durante um sonho, acho difícil o nosso subconsciente nos colocar na pele de outra pessoa (estou errado?). O fato da narrativa ser retratada na vida de um personagem da alucinação é uma sacada legal mesmo, mas fica mais difícil o final fazer sentido.
ResponderExcluirNa maioria das vezes o nosso consciente não lida com nossa problemáticas e acabamos transferindo isto em outros, como no mecanismo da projeção. Acho que partindo desse pressuposto faz um certo sentido que o Subconsciente de Henry o "coloque sob a pele de Sam" uma vez que ele próprio tem problemas para lidar com sua culpa diretamente.
ExcluirOi. Ao que entendi, todos os personagens são ele. O doutor, tambem.
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