quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

A passagem



Por Breno Ribeiro


A passagem (Stay, 2005), dirigido por Marc Forster, traz uma narrativa intrigante que desvela seus significados pouco a pouco e, com várias metáforas e rimas visuais, oferece material para discussões infindáveis. Neste contexto, e amparado por alguns conceitos psicanalíticos sobre a natureza dos sonhos, apresentarei algumas interpretações sobre o filme.

A trama gira em torno do psiquiatra Sam Foster (Ewan mcGregor) que se vê obcecado em ajudar Henry Letham (Ryan Gosling), um estudante de Belas Artes profundamente angustiado que planeja cometer suicídio. À medida que Sam estuda o caso, começa a duvidar da realidade que se apresenta, pois as coisas começam a fazer cada vez menos sentido.

Apenas no fim do filme vemos que toda a trama é construída por Henry, numa espécie de devaneio, enquanto este agonizava, após um acidente automobilístico no qual morrem a namorada e os pais do personagem. Esse seu devaneio, ao que parece, funciona na lógica de um sonho, misturando aspectos psíquicos com fatores esternos. Há mudanças repentinas de cenário e de personagens, como ocorre num sonho. Assim, o que vemos é uma viagem na mente do personagem que, naquele momento, está cheia de dor e remorso. Isso reflete em seu “sonho” por meio de uma trama que ele cria a partir do que está acontecendo à sua volta em seus últimos minutos de vida.

Para a psicanálise o sonho é uma manifestação de conteúdos inconscientes que ocorre durante o sono, ou seja, quando o nível de consciência está baixo. Um dos mecanismos do sonho descritos por Freud é a condensação, que consiste na combinação de vários elementos (temas, imagens, ideias etc.), o que ocorre com muita frequência no filme.

Freud postulava que o inconsciente é atemporal. Baseando nisso, podemos entender porque um momento que dura poucos minutos no real parece mais tempo na trama inconsciente; que também não se apresenta de modo linear.
Assim, vemos a confusão mental de Henry, no estado de quase morte, e também uma série de outras coisas que passam por sua cabeça, como questões mal resolvidas (como não ter pedido sua namorada em casamento), sentimentos de culpa etc. Ele se sente culpado pela morte dos seus entes e isso se expressa no "sonho" por meio dos inúmeros "perdoem-me" que Henry escreve na parede do seu quarto.


Seu sentimento de culpa também é manifestado no “sonho” através da ideação suicida, ou quando apaga cigarros na própria pele, num ato de autopunição.


As vozes que ouve e as pessoas que ele encontra no decorrer da trama são as pessoas ao seu redor, no local do acidente. O menino com a mãe, o casal de velhinhos, entre outros. Em seus últimos momentos de vida, Henry está com a visão turva e duplicada, isso explica a grande quantidade de gêmeos e pessoas duplicadas que aparecem em seu devaneio.


Por meio do mecanismo de condensação, Henry cria, na sua trama inconsciente, personagens inspirados nas pessoas que estão a sua volta após o acidente, mas que representam aspectos de sua personalidade. Sam, o médico que tenta desesperadamente socorrê-lo no local do acidente, também tenta ajuda-lo no "sonho", mas como psiquiatra, uma vez que Henry está atormentado pela culpa.

Podemos entender esse personagem como a combinação de Sam, com o desejo de Henry em ser ajudado, e elementos de suas experiências anteriores com psiquiatras. Em vários momentos a imagem de Sam é misturada com a de Henry, e até mesmo alguns personagens os confundem. 


E reparem que o Dr. Sam Foster usa sempre calças muito curtas. Isso porque, ele, na realidade, está agachado ao lado de Henry, que o vê com as calças acima dos tornozelos, devido à posição.


Já Lila (Naomi Watts), a enfermeira que também o socorre depois do acidente, no “sonho” é representante das aspirações artísticas de Henry como pintor e também possui traços do seu passado. Ela traz cicatrizes nos braços, resultado de uma tentativa de suicídio quando vivia uma crise depressiva. Algumas cenas sugerem que esta seja uma passagem da vida de Henry, como quando Lila diz que suas cicatrizes “são de uma outra vida” e quando sua namorada o descreve como um sujeito “muito pálido, magro e com cicatrizes nos braços”.


Enfim, A Passagem retrata a tentativa autocurativa inconsciente de Henry, que busca, através dos seus devaneios, ficar em paz consigo mesmo, após a experiência avassaladora que foi o acidente. E as várias cenas em que Sam desce escadarias em espiral é a analogia dessa jornada que vai cada vez mais fundo em seu inconsciente.

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  9 comentários:

  1. Excelente análise, me fez entender vários pontos do filme que não tinham sentido pra mim. O da calça e dos gêmeos foi o mais intrigante.

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  2. Análise maravilhosa.Conseguiu esclarecer alguns aspectos que me fugiram à percepção. Agradeço a você por ter postado. Parabéns!

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  3. Bela análise, e esclarecedora. Realmente o filme é intrigante e se revela somente no fim. Prende a atenção o tempo todo. Boa diversão.

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  4. Parabéns pela análise!!! Psicanálise sempre incrível!

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  5. Eu tinha entendido que todo filme era um sonho dele ,depois da cena final rs ,no qual ficou mais claro . Pois durante o filme me parecia que Henry era a consciência de Sam .Mais sua análise foi perfeita ,nota 10 pra ti !!

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  6. Até entendi isso no final do filme. O que não entra na minha cabeça que a trama ocorre toda no ponto de vista do Sam, sendo que o devaneio é de Henry. Durante um sonho, acho difícil o nosso subconsciente nos colocar na pele de outra pessoa (estou errado?). O fato da narrativa ser retratada na vida de um personagem da alucinação é uma sacada legal mesmo, mas fica mais difícil o final fazer sentido.

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    1. Na maioria das vezes o nosso consciente não lida com nossa problemáticas e acabamos transferindo isto em outros, como no mecanismo da projeção. Acho que partindo desse pressuposto faz um certo sentido que o Subconsciente de Henry o "coloque sob a pele de Sam" uma vez que ele próprio tem problemas para lidar com sua culpa diretamente.

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  7. Oi. Ao que entendi, todos os personagens são ele. O doutor, tambem.

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